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Carta à minha infância

Querida infância,

Escrevo-te do futuro com uma enorme saudade, mas com alguma indignação para te perguntar: Porquê? Porque tiveste tu tanta pressa em passar? O que te levou a pensar que a vida de adulto era mais empolgante que uma tarde inteira a brincar às bonecas, ou a ver desenhos animados enquanto comia guloseimas?

Gostava que não que não tivesse ocupado tanto a minha cabeça a pensar no amanhã, no que viria depois, e que me tivesse preocupado verdadeiramente com o que realmente importava na altura: nada!

“Como é que a inocência deixou de existir? Como?”

Como é que brincar às senhoras crescidas, com os sapatos de salto alto da mãe, passaram a dores nos pés depois de horas em pé na fila da segurança social? Como é que comer “pintarolas” a fingir que eram comprimidos passaram a caixas de antidepressivos? Como é que brincar às bonecas que tinham amigas e iam às compras, passaram a dinheiro a menos na minha carteira ao fim de uma tarde? Como é que ler um livro só porque tinha bonecos, passou a ter de passar o dia inteiro com a cabeça enfiada em letras? Como é que 1+1=2 passou a raízes quadradas, cúbicas, binómios e teoremas? Como é que o amor passou de simples a complexo? Como é que a inocência deixou de existir? Como?

Podias-me ter avisado que te aproveitasse mais, que aproveitasse as tuas férias de Verão com esguichadelas de mangueira, que aproveitasse enquanto brincar nos baloiços ainda era bem visto, que aproveitasse uma árvore cheia de presentes no Natal e que a maior parte não tivesse sido comprada por mim, que aproveitasse as tardes a brincar com aquela amiga que hoje é apenas uma conhecida.

As bonecas que agora jazem dentro de uma caixa à espera que alguém se volte a lembrar delas, os desenhos animados que mesmo repetidos via vezes sem conta até saber as falas de cor, o chocolate que a minha mãe me trazia sempre que ia às compras, as cabanas debaixo de lençóis para jogar ao peixinho com a minha irmã, e que aproveitasse mais, mas muito mais, o colinho da minha mãe e as cócegas do meu pai.

“Mas obrigada na mesma, por todas as memórias que me deixaste.”

Ao menos podias-me ter avisado que ias passar tão depressa e que não ias voltar para um último adeus. Mas obrigada na mesma, por todas as memórias que me deixaste.

Com saudade, eu.

Imagem de capa: sindlera, Shutterstock

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